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domingo, 13 de janeiro de 2013

Todo mundo feliz - Zeca Camargo


“As melhores críticas que o dinheiro pode comprar”. Este é título de uma das matérias mais interessantes que li recentemente. Foi publicada domingo retrasado, no suplemento de negócios do jornal “The New York Times” e assinada por David Sreitfeld – e eu já imagino que você deve estar se perguntando o que eu estava fazendo fuçando o suplemento de economia de um jornal? Bem, ocorre que o caderno de economia do “NYT” é um dos mais divertidos da edição de domingo, com matérias inesperadas e inteligentes, capazes de atrair até mesmo quem não tem intimidade com o assunto – como eu (e com uma outra abordagem, que não o “economiquês” que faz os nossos cadernos de economia aqui uma aborrecida reciclagem dos anos 70…). Mas fora isso, o título da reportagem era irresistível! Como assim, “as melhores críticas que o dinheiro pode comprar”? Desde quando uma crítica pode ser comprada?
Bem, desde sempre, não é? História de corrupção nas artes não são exatamente novidade – remonta, arrisco, os tempos renascentistas quando a arte finalmente assumiu seu papel transformador na cultura ocidental. E certamente sobrevive, de forma discreta – com eventuais denúncias, de tempos em tempos (eu, por exemplo, tenho idade suficiente para me lembrar reportagens dos anos 70 sobre escândalos de “payola”, como é conhecida nos Estados Unidos, a prática de se pagar para que uma música toque em determinada rádio – e seja até mesmo elogiada pelos DJs e locutores). Como um repórter de cultura com mais de 20 anos “de janela” (ok, 25!), não posso esconder que, como leitor, já encontrei vários textos de favorecimento “suspeito” – que, felizmente, não são a maioria, nem a tônica da imprensa séria. Mas o que o artigo do “NYT” apresentava era um contexto totalmente diferente: um negócio, “oficial”, que se especializava em escrever críticas favoráveis de determinados livros em troca de um “modesto” pagamento!
Há cerca de dois anos, um certo americano chamado Todd Rutherford teve uma ideia: por que não escrever críticas positivas de livros auto publicados (a nova “ameaça” ao mercado editorial, cujo exemplo mais popular é o fenômeno “Cinquenta tons de cinza”, da inglesa E.L. James – publicado aqui no Brasil pela Intrínseca)? O momento parecia ideal: com os jornais perdendo cada vez mais leitores (para não falar dos jornais literários) – e até mesmo algum prestígio – as “críticas-relâmpago” que apareciam na internet (em sites como a da Amazon) estavam se estabelecendo como uma das peças mais importante na árdua tarefa de convencer um leitor a comprar um livro de um autor desconhecido. Como conta Streitfeld:
“Críticas de pessoas comuns têm se tornado um mecanismo essencial para vender qualquer coisa online: são usados para resorts, dermatologistas, restaurantes da vizinhança, butiques de alta moda, igrejas, astrólogos e curandeiros (…). Em vários casos, essas críticas estão suplantando os departamentos de marketing, as assessorias de imprensa, publicidade, boca a boca, e avaliações de profissionais”.
Alarmante? Então preste atenção nesse depoimento, também da mesma reportagem. Segundo Bing Liu, um pesquisador de informação da Universidade de Illinois, em Chicago, “as engrenagens do comércio online funcionam com críticas positivas”. Uma pesquisa sua mostrou que, em 2008, 60% dos produtos avaliados na Amazon ganharam 5 estrelas – e mais 20% tinham pelo menos 4 estrelas. Ou seja: estamos vivendo num mundo maravilhoso, onde tudo que a gente compra é muito legal – mais legal do que quando a gente vai pra Baleia (desculpe, não resisti!).
A realidade, porém, não é bem assim. A maior parte do que está disponível na Amazon – na verdade, a maior parte dos produtos culturais (e vou ficar só neles, pois são “minha praia”) que nos são empurrados todos os dias – é medíocre. Livros mal escritos, desinteressantes e aborrecidos. Discos sem nenhum brilho, com músicas sem nenhuma originalidade, frequentemente com ideias nada originais. Peças de teatro amadoras, filmes ordinários, shows tipo “caça-níquel”, programas de TV baratos e inconsequentes. Um trabalho de qualidade – esse sim é a exceção! Mas quem é que, hoje em dia, em tempos de internet, quer ler, ver ou ouvir alguma coisa ruim sobre um artista que os fãs gostam tanto?
Para contornar “o velho” sistema – aquele onde as coisas eram avaliadas por pessoas que tinham um certo estofo para a tarefa – basta você lançar um twitter quando seu artista favorito solta uma nova música ou está em um novo filme (ou uma novela) e pronto! Uma grande massa se mobiliza para elogiar alguma coisa, não exatamente porque ela é boa, mas porque essa massa gosta dela. Critérios? Quem precisa deles?
Voltando à história de Todd Rutherford, há dois anos ele criou o “GettingBookReviews.com” (que, se fosse em português, chamaria-se “ConseguindoCríticasdeLivros.com”). Os elogios que ele espalhava na internet para livros que nem chegava a ler por inteiro eram tabelados (a coisa era séria!): uma única resenha custava 99 dólares. Mas, como observa o repórter, alguns autores queriam um “coro de aprovação”. E assim surgiram “pacotes promocionais”: por 499 dólares, ele soltava 20 críticas positivas; e por 999 dólares, 50. Nenhum autor iria se sujeitar a pagar isso, certo? Errado! Em um bom mês, Todd faturava até 28 mil dólares! E todo mundo ficava feliz…
Os autores, que de uma hora para outra viam seus livros cobertos de elogios. Os sites de compras que viam seus produtos tendo uma saída inesperada – azeitada, claro, pelas “ótimas” críticas. Todd, sem dúvida, não reclamava do dinheiro no bolso. E o leitor – esse pobre ponto final de qualquer obra de arte – esse nem parava para pensar: lia o livro e achava ótimo, afinal, quem era ela para discordar do tal “coro de aprovação”? (Na verdade, ele era “o leitor”, a criatura soberana que deveria ter articulação suficiente para ponderar sobre o que gosta ou o que não gosta, mas em tempos de “aprovação total” – ainda que sem critério algum – ele acaba se sentindo um trouxa se não… concordar com todo mundo! Mas eu divago, claro).
O único problema é que essa “felicidade geral” era uma mentira. Como a fábrica de superlativos de Todd deixava claro, esse “aplauso absoluto” era uma fabricação. Servia a quem? Ao comércio, sem dúvida – e, por tabela, ao ego do autor. Mas certamente não acrescentava nada ao discurso cultural. E tampouco nos ajudava a eleger bons autores – nem a peneirar o que estava sendo escrito de bom. A “democratização das opiniões”, que é certamente um dos efeitos colaterais mais duvidosos da internet, de uma hora para outra empobreceu o exercício da crítica – e deixou todo mundo desorientado.

Pegue Bruce Springsteen, por exemplo – cujo último álbum, “Wrecking ball” fez com que ele ressurgisse na mídia recentemente. Ele tem uma longa carreira, com bem mais altos do que baixos. Mas qualquer crítico de respeito reconhece que nem todos os seus trabalhos são excelentes – e muitos não têm problemas em assinalar os discos mais fracos. Eu mesmo já me decepcionei com discos que bandas que venero (ou venerava quando existiam), como R.E.M., Oasis ou – para dar um tom mais “alternativo” – Manic Street Preachers. A gente tem que ter a coragem de admitir que nossos ídolos (parafraseando Elis) nem sempre são os mesmos…
Nenhum artista oferece um produto cultural na expectativa de que ele será atacado pela crítica – ninguém é tão masoquista assim… Mas ter seu trabalho avaliado é o ponto final de uma coisa chamada “processo criativo” – e não é um punhado de resenhas ruins que vai desanimar esse autor ou essa autora de continuar a produzir coisas boas. Na melhor das hipóteses, a opinião desse crítico – isto é, de alguém que tem notoriamente conhecimento sobre o assunto – pode até orientar o artista nos seus próximos caminhos.
Escrevo isso, sei bem, do alto de uma montanha de vulnerabilidade que acabei de escalar. Como já mencionei antes em algum canto deste blog, acabei de “estrear” na ficção: fui convidado a participar de uma coletânea de contos baseados em músicas dos Beatles – e o resultado (“O livro branco”, editora Record) acaba de sair. É uma amostra pequena e modesta, mas, não obstante, estou dando a cara para bater – ao mesmo tempo aceitando o compromisso de acatar uma boa crítica (o que não significa necessariamente uma crítica positiva – pode ser negativa também, desde que não seja rasa na linha “você é um imbecil que trabalha em TV e acha que sabe escrever”, algo bastante frequente, como você pode conferir em comentários aqui publicados). Esse diálogo virtual entre leitor e autor (seja de livro, música, filme, ou qualquer outra forma de expressão) deve ser saudável e honesto. Mas estamos perdendo este hábito…
Vou dar um outro exemplo recente. A “Granta”, uma das mais respeitadas revistas literárias do mundo, lançou, há alguns meses, um volume com os melhores escritores brasileiros com menos de 40 anos. Imediatamente depois que os nomes foram anunciados, começou a discussão sobre a “validade” dessa seleção – um bafafá inócuo muito bem descrito por André Barcinski numpost de algumas semanas atrás. Vi algumas dessas “trocas de elogios” na própria internet – e até me diverti um pouco com elas. Mas não li sequer uma crítica que me orientasse de maneira sensata: qual desses “jovens autores” vale realmente a pena? Não achei nenhum texto cuja opinião eu pudesse confrontar com a minha – não para ver se eu “acertei ou errei” no meu gosto, mas para me dar um parâmetro para contrabalancear as minhas avaliações.
Eu mesmo queria escrever sobre a coletânea – assinalar o que eu tinha realmente gostado (Daniel Galera, claro; Chico Mattoso com o provocante “Mãe”; Tatiana Salem Levy; Carola Saavedra; Ricardo Lísias; e Julián Fuks – para mim, o melhor de todos, baseado, claro, nesse conjunto). Queria também explicar o que me decepcionou (Cristhiano Aguiar; Luisa Geisler; Antônio Xerxenesky). E tentar entender o que a “Granta” viu de especial nos outros autores que certamente tem qualidade, mas não o que eu chamaria de “centelha”. Mas alguém está interessado em ler/ouvir isso? (Mais fácil twittar o que eu “gostei e não gostei”, não é mesmo?). Melhor a gente sair elogiando tudo e, como já coloquei aqui, deixar todo mundo feliz…
Ah! Sabe o que aconteceu com o site de Todd Rutherford? Uma autora/cliente não achou que as críticas que ele escreveu (de encomenda, só lembrando) sobre seu livro eram suficientemente elogiosas e postou comentários ultra negativos sobre o GettingBookReviews.com – ele foi perdendo clientes e seu negócio fechou.
E eu que achava que não existia justiça neste mundo…
O refrão nosso de cada dia
“Cotton flower”, Moriarty – nos dias em que eu estava bem mal da pneumonia, quando a única coisa que conseguia me divertir era a música (achei que ia ler muito nessa minha recuperação, mas não deu certo…), essa banda foi uma das que mais me fez companhia, descrevendo musicalmente o que eu estava sentindo. E dentre tantas canções lindas, essa é a minha favorita – com um refrão que já começa abrindo a música. Você não precisa estar doente para gostar…


Fonte:Blog do Zeca Camargo

By JORNALISMO ANTENADO with No comments

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