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sábado, 16 de janeiro de 2010

Encontros - Lya Luft

ENCONTROS

Acordou com dor nas costas. Não era bem dor, mais um desconforto. Nem era no lugar onde às vezes doía, mas abaixo das omoplatas. Pensou, tenho de começar a fazer ginástica, alongamento, só caminhar três vezes por semana não basta.

- Isso é dos nervos. Você tem que arrumar uma amante pra trepar - lhe diz a amiga desbocada - , porque com seu marido sei que não transa mais.
- Trepar a gente trepa - ela respondeu sorrindo meio sem graça - ,mas com parcimônia - e riram as duas , daquela intimidade de colegiais.

Notou que andava mais inquieta e distraída. Os filhos pareciam mais barulhentos, tudo no marido a irritava, até o barulho de sua mastigação e sua mania de pigarrear. O trabalho estava masi cansativo. Seus pensamentos fugiam mais vezes da realidae que, embora monótona, era um conforto. Este é o meu lugar no mundo, pesanva, retornando para casa no fim de cada tarde. Esta é minha tarefa no mundo, pensava, fazendo as compras com a lista do supermercado na mão, o filho menor, já adolescente, empurrando o carinho, emburrado.

Num outro dia, saindo do banho e olhando-se no espelho nua, examinou-se de frente, o ventre um pouco flácido, os seios nem de longe os seios gregos que o marido beijava  com tanto ardor nos primeiros tempos. O cotidiano convívio havia-lhes roubado o fervor. Avaliou seu corpo também de lado, viu com pavor que havia duas maras longas espáduas abaixo, duas listras nascentes logo debaixo dos ombros e descendo até quase a cintura: convexas, saltadas como cicatrizes enormes, dois dedos de largura.

Tentou tocar-se meio sem jeito, difícil de alcançar, mas conseguiu: aquilo era mágico, ao toque de seus dedos começaram a palpitar. Pensou: Se for câncer é um câncer muito esquisito , e de tão grande nem adianta falar porque devo estar morrendo mesmo. Mas o rosto estava bom, a pele saudável, a cor razoável, não tinha ar de doente terminal. Decidiu esperar um pouco para ver no que dava. Sua mãe fazia assim quando eram pequenos: Se daqui a três dias continuar doendo, a gente procura o médico.

- Você anda distraída, hein mãe - lhe disse o filho mais velho um dia. 

O marido não percebia nada. Mas ele não costumava mesmo prestar muita atenção. Insatisfeita com tudo, a mulher resolveu trocar a cor do cabelo, de um castanho comum por um quase-vermelho brilhante. Saiu do salão sentindo-se uma rainha egípcia. Quando o marido entrou no fim do dia, ela o aguardava ansiosa por dividir com ele ao menos aquela novidade e, radiante porque achava aquela transformação uma beleza, perguntou assim que o viu na soleira:

- Notando alguma coisa nova, bem?
Ele parou, sorriu inseguro, olhou em torno, olhou para ela, abriu mais o sorriso e finalmente disse:
- Você trocou o tapete?

Ela não se zangou, lembrando quantas vezes fora impaciente com ele, quantas vezes criticara seus gostos e ironizara suas pequenas manias, quantas vezes fora pouco generosa. Aquela era a vida deles. Aquele era seu lugar no mundo. E não era inteiramente ruim.

Certa vez ela estava pensando em alguma bela coisa erótica, o que há tempos não não fazia, sozinha em casa depois do banho, e tocou-se como há muito não se tocava, pensando: Bom, se vou morrer mesmo, ao menos me divirto um pouco antes. Pois os sinais nas costas estavam mais destacados, e o desconforto maior, com um ímpeto que precisasse muito sair dali - então na hora do supremo prazer deu um salto e sentou-se, achou que explodia, e de repentecomeçou a alçar-se acima da cama.


Olhou assustada sobre o ombro esquerdo, e notou que nas suas espáduas se abriam duas asas. com esforço e um terror inicial, conseguiu aterrizar de novo, quase batera com a cabeça no teto. Andou até o banheiro, com cuidado para nao levantar voo ao menor movimento.

E, quando se contemplou, achou-se belíssima, logo aprendeu a manejar, abrir, fechar, levantar, dobrar de novo como um leque enorme. E - mais estranho de tudo - não teve medo mas alegria. Era isso: não estava morrendo de um câncer. Era mágico, ela estava virando anjo. E a dimensão desse segredo quase a derrubou.

No começo foi difícil acomodar as asas debaixo da roupa, pois mesmo que dobrassem direitinho faziam um certo volume. Começou a usar roupas mais folgadas. E como ninguém em casa ligasse muito para ela, logo se sentia à vontade com o seu segredo.

Mas dava-lhe uma certa pena não ter a quem contar aquilo. O marido, nem pensar. A vida deles estava tão organizada, que não permitiria uma inteferência daquelas, nunca se sabia quando as coisas começariam a desmoronar, e aí nada mais poderia conter a ruína. Nem a melhor amiga enteneria. Pois era uma boa mulher, divertiam-se um pouco juntas, mas um assunto assim, estranheza demais, talvez a afastasse.

Iam interná-la como doida; iam querer operar e cortar as asas; iam botar na televisão como monstro; iam isolar e manipular em algum centro de epsquisas, sabe-se lá. Para aliviar a agonia secreta dessa possibilidade, de noite saía par ao pátio da casa, abria as asas e voava. com uma amriposa gigante, sobrevoava o cotidiano, enxergando tudo de outra perspectiva, mais completa e mais vasta.

Num daqueles volteios, desobriu outro igual a ela,girando nos ares não muito longe, e ficou observando, pousada num telhado. Descobriu onde ele vivia, onde trabalhava; por onde andava no cotidiano. e começou a encontrá-lo fingindo que era acaso, e tomaram juntos um cafezinho, depois foram ao cinema, e finalmente decidiram que estavam apaixonados e tinham de viver aquilo.

Ela teve muito medo de que eel descobrisse, e do que faria ao descobrir. Mas com paixão é glória e insanidade, consentiu, e encontraram-se, e quando le insitiu em que tirase a roupa, da primeira vez ela não quis, fazendo-se de   envergonhada.
Em outro dia, porém, ficou mais impaciente e ansiosa, e decidiu arriscar, mas pediu enquanto tirava a roupa:

- Vamos fazer em pé?

E quando, na penumbra, se abraçaram e logo começaram a gemer, e se esfregar, e se procurar, ela sentiu entre horrorizada e feliz que suas grandes asas se desdobravam. Mas o amante não se assustou. Não se afastou. apertou-se mais a ela, dizendo,vem comigo, vem comigo,vem comigo. 

E abriu suas asas também.

Fonte:Parte integrante do livro O silêncio dos amantes- Lya Luft - pág 101-105, ed.3- 2008. 
  
Neste conto, Lya nos faz refletir sobre os conflitos familiares ; a eterna busca de um sentido para a vida e também a magia e o amor nos relacionamentos. Eu enxergo a mulher da história muito parecida com tantas mulheres e homens que se veem presos aos laços de uma união, não apenas por conveções sociais  mais por uma total falta de perspectiva além. A ideia da transmutação em anjo mostra como as pessoas sofrem por processos de transformações em suas vidas, muitas das quais num momento em que elas menos esperavam.
O receio de mudança é natural ao ser humano, crescemos aprendendo que devemos nos cuidar para não deixar-se levar apenas pelos sentimentos e emoções, que podem ser traiçoeiros e ilusórios.
Porém, construir muralhas ao redor de nossos corações de nada adianta, como no conto se suas "asas" forem descobertas não conseguirá manter-se preso ao chão, ao contrário irá alçar voos cada vez mais altos e encontrará outros iguais a você em vontade e busca de realização.
Não creio que esse texto tenha um significado único, cada um que o ler terá sua própria visão este é o interessante dos textos da Lya , nos levam  a refletir nossas próprias vidas .

Márcia Canêdo

By JORNALISMO ANTENADO with 18 comments

18 comentários:

MOÇA !!!!!!

Estamos de volta .... !!!!!

risos

Agora sim, vamos colocar a casa em ordem novamente, estou em falta com os amigos, pelos motivos EXASUTIVAMENTE EXPLANADOS e muito mais do que Explicados.

Voltei há pouco mais de 51 ou 52 horas .... e só durmo, não paro de dormir .... risos ....

Eu fico meio "zureta" assim mesmo pelo menos 3 ou 4 dias, depois volto ao normal ....

Estava dando uma ""passadinha"" rápida na VEJA que me chegou hoje, por volta das 17 e 30 horas, e tambem li rapidamente o artigo de LYA LUFT, que é a primeira página que leio na VEJA quando é a Semana em que Ela lá escreve.

Mas e o sono ... ??? risos ...

Vai ficar para a Semana, amnhã vem os NETOS por aqui, filhos, noras, genros, sobrinhos, amigos, vizinhos, cães, gatos, tartarugas, iguanas, só não vem POLITICOS, graças a Deus, pelo menos por enquanto eles não virão .... risos ....

Bom domingo e grande beijo no coração

FIQUE NA PAZ

LUIZ GNZ

Márcia,

Esse texto é lindíssimo, pois retrata amplamente a liberdade que muitas mulheres desejam, mas não a tem.

As asas são a expressão da liberdade, onde essa mulher pode se libertar e voar para qualquer lugar sem ter medos ou receios, sem ter vínculos ou apegos...

Sensacional.

Bjs.

Rosana.

Ola Marcia

A crônica realmente transmite aquilo que muitos de nós encontramos no nosso dia a dia.
Certos fatores doutrinam nossas "rotinas" e nem percebemos que deixamos para tráz aquilo que mais belo existe, a "vida".
Podemos nos arriscar, trabalhar, divertir, ensinar e educar, mas não devemos jamais deixar de viver.
As coisas belas da vida devem ser desfrutadas ao máximo, devemos dar "asas" aos nossos sonhos e deixá-los fluir em nossas artérias.
Se de tudo fizermos um pouco, com certeza o amanhã será melhor.
Adorei o texto.
Um abraço

Mad

Olá querida amiga Márcia,

Parabéns pela escolha do texto.
É incrível esse que publicou.

O que você comentou a respeito do texto da Lia reflete intensamene o que penso e o fez de forma bela e precisa. Em seguida, a Rosana faz um comentário tão lindo, englobando a essência do texto, que nada sobra a acrescentar, para não estragar a harmonia dos dois.

Assim, deixo meu carinho e meu fraterno abraço às duas, com as bênçãos de Deus.

Lilian

Salve, minha querida e linda Confrade!
Não é a Fafá de Belém quem canta: (Dentro de mim mora um anjo, Que tem a boca pintada, que tem as unhas pintadas, que tem as asas pintadas... Ele é meu lado de dentro, eu sou seu lado de fora...!)
Eu na verdade te digo minha querida que, dentro de cada um de nós moram anjos e demônios; estes rugindo sua revolta, numa cadeia de ressentimentos e frustrações, querendo a irrestriçao irresponsável da liberdade inconseqüente; e aqueles, belos, meigos e sensuais, implorando a delicada alforria do amor, do prazer a dois, da cumplicidade explícita dos que vivem em simbiose. Porém, - para a desgraça dos sonhadores - ambos, via de regra, precisam estar aprisionados aos grilhões cruelmente hpócritas das convenções, da rotina e das conveniências.
Parabéns por nos brindar com tão belo e reflexivo texto!
O Cavaleiro Virtual te abraça em terno carinho!
Este sempre teu Confrade: Max Costa

Amiga li este livro e ele é simplesmente uma jóia, parabéns por escolher este texto.
abraços forte

Márcia,

Um texto maravilhoso, adorei!

Parabéns pelo post!

Abraços,

FrancK

Querida Marcia, eu so li até hoje 2livros dela, mas costumo ler muitos textos que ela escreve em revistas. Gosto do que ela tenta transmitir. Este resumo do que podemos encontrar neste livro indicado me deixou com água na boca. Eu tenho uma amiga que compra tudo dela e já sei a quem pedir. Isso é otimo, pq ela adora ter com quem falar depois.

Bjs

Olá amiga Mércia, muitas mulheres estão presas em relacionamentos que a deixam insatisfeitas e estas não procuram a liberdade que almejam. A vida é para ser vivida com amor e esperança e não para se deixar de fazer aquilo que se mais gosta. A liberdade é essencial em um relacionamento. As pessoas tem que amar a si própia e não viver em torno do marido e filhos.

Bjão.

Olá Márcia. Adorei visitá-la e ler o texto. Conhecia dela, outros, e este me levou às nuvens... porque acho que já andei por lá, no passado, algumas vezes.
Há muitas e diferentes maneiras de se voar, inclusive através da arte. Ou até, pasme você, com o próprio marido, se ele for corajoso e despreendido o suficiente...Mas,no texto, com tal amante,o que dizer ?
Bj. Vera.

Realmente a Lya Luft é uma das grandes escritoras desse país.

Saudações!
Que Post Fascinante!

Amiga Márcia, gostei muito do texto, é um retrato dos conflitos que muitos sonham em realizar um dia, talvez, de repente muitos se tornam felizes somente sonhando com tantas irrealizações, que se tornam, por conseguinte um espécie de combustível que eterniza a vida.
Parabéns pelo excelente texto reflexivo!
Abraços fraternos,
LISON.

Todos nós precisamos de asas pra voar, pra deixar o mundo com suas continuidades e ressurgirmos nos sonhos.

Liberdade, este é o nosso sonho...

Um abraço!

Olá, minha querida.
Li e amei esse texto. Você tem razão quando diz que ele nos dá margem a diversas interpretações. Eu penso no anseio do ser humano em ser livre, de poder ser um alguém além daquilo que ele próprio construiu pra si. Criar asas e poder voar, começar algo novo que, em nossa imaginação, poderia ser diferente. Dessa forma passamos a vida em busca da felicidade. Veja como a personagem se sente no relacionamento, como se tivesse uma obrigação a cumprir, um papel que já estivesse escrito e determinado. Não se sente estimulada a mudar o que tem porque não ve saída. Em um novo relacionamento poderia mostrar-se como um anjo, diferente, sem os vícios e defeitos costumeiros, alçar vôo com um igual. Seria perfeito, não é mesmo? Essa é a busca do ser humano: a perfeição que gera felicidade. São idealizações como essa que sustentam nossas emoções.
Parabéns pelo post.
Beijo grande
Bel

Olá Márcia,

Um dos pontos que mais me chamou a atenção, até por ser muito comum, é o modo distraído com que o marido trata a esposa. Sei que nem sempre é fácil reparar quando a mulher corta "dois dedinhos" do cabelo, mas a revolução que ela começara com seu visual iria muito mais longe.

E as asas? Não reparar nisso seria ser muito indiferente à esposa. Pena que essa história é vivida por muitos casais.

Ótimo texto!
Beijos.

Olá Márcia,
Agradeço a indicação. O texto é riquíssimo em significados para a construção de um relacionamento saudável.
Penso que os sonhos precisam ser compartilhados, respeitados e aceitos pelo outro.
A partir do momento que permitimos que o outro crie asas para voar, estabelecemos um pacto de fidelidade e de confiança, a ponto do outro pensar dez vezes antes de pensar em olhar para o jardim do vizinho.
Nenhum ser humano gosta de viver em prisão. Somente o amor é que pode unir duas pessoas; o amor tanto atrai o outro, quanto se propõe a uma submissão prazeirosa.
Como seria bom se a família fosse resgatada....
Sonia

O texto da Lya revela que muitas mulheres estão aprisionadas não só a um modelo de vida infeliz, mas também a um modo de olhar o homem como regente de sua vida. As asas doem, mas é o brotar dessa dor que conspira para a felicidade de um nova experiência, redentora. Uma mulher tem que se permitir sofrer para conquistar um novo modo de felicidade.
Querida, gostaria que visitasse meu blog:

www.geovanebelo.com.br

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